Quase um mês após eclodirem na imprensa denúncias de abusos sexuais de mulheres contra João de Deus, parte dos moradores de Abadiânia (GO) ainda mantém silêncio sobre as suspeitas em torno do médium por receio de represálias. Segundo as autoridades, esse medo ajudou com que as denúncias demorassem anos a aparecer.
Quem ousa falar sobre o assunto, teme por ameaças.

A pouco mais de 100 quilômetros do Distrito Federal, o município é cortado pela BR-060. No lado direito da rodovia que liga o DF a Goiânia, fica a Casa Dom Inácio de Loyola. Em torno dela, há dezenas de hotéis, pousadas e lojas de artesanato, com atendimento voltado para o turismo religioso ao público-alvo estrangeiro. Desde o escândalo, os habitantes sentem o reflexo da ausência do seu principal nome na rotina da cidade e, principalmente, na economia.
Do outro lado da rodovia, ficam os principais serviços à população e negócios que se desviam do nicho que impulsiona o desenvolvimento local. Lá também estão a casa residencial do médium e a instituição filantrópica mantida por ele.

Um vendedor que trabalha nas redondezas do centro espiritualista coloca-se na defensiva, mas responde ao questionamento da reportagem sobre as denúncias. “Eu não falo nada. Quando houver lei neste país e bandido ficar preso, posso falar”, afirmou. Outros vizinhos da loja se negaram a falar sobre a situação.

A poucos metros, na lanchonete da Casa Dom Inácio, funcionários cochicham: “Viu a reportagem sobre o patrão?”, referindo-se sobre a saída de João de Deus para atendimento hospitalar, em 2 de janeiro. 
O assunto é cortado rapidamente. A saúde frágil do médium, de 77 anos, é um dos principais argumentos da defesa para que ele seja beneficiado por um habeas corpus, ainda sob análise no Supremo Tribunal Federal (STF).

Vítimas de abusos e testemunhas continuam sendo ouvidas pelo Ministério Público de Goiás (MPGO), em Goiânia. Mais de 100 relatos já foram oficializados pelo órgão até 28 de dezembro, e não há previsão para que o trabalho investigativo termine.

Com a primeira denúncia oferecida à Justiça pelo MPGO, João Teixeira de Faria, o João de Deus, pode ser condenado a até 42 anos de reclusão por dois crimes de estupro de vulnerável e dois de violação sexual mediante fraude. Autoridades policiais chegaram a apontá-lo como líder de uma organização criminosa, após a apreensão de cinco armas de fogo e o equivalente a R$ 1,6 milhão na residência onde mora com a esposa, no centro da cidade.

Ameaças
Uma pessoa que frequentou o seio familiar do médium disse que, após um desentendimento com um dos membros do centro, precisou mudar de estado por medo de ameaças. Durante uma conversa com o Metrópoles, ela disse que boletins de ocorrência registrados sobre a ocasião desapareceram sem explicação.

“Todo mundo sabe o poder e a influência que tem o seu João. Apesar de ele estar preso, tenho extremo receio”, disse. “As pessoas fingem que não sabem, que não veem. Comentário sempre houve, sobre muita coisa, mas nunca foi provado”, complementou.

Moradora de Valparaíso de Goiás (GO), uma das vítimas que denunciou os abusos teme que ele saia da prisão. Anos depois, as marcas do crime permanecem na vida da mulher de pouco mais de 40 anos que frequentava a Casa Dom Inácio semanalmente.

“Tem dias que dá um desespero, uma tristeza, uma agonia de estar revivendo isso tudo. Ao mesmo tempo, a gente tem esperança por Justiça. Estou colocando para fora o que guardei por 19 anos. Ele brincou com a minha fé, debochou de mim. Graças a Deus esse homem foi descoberto”, desabafou.

Tenho medo. Quem tem dinheiro consegue de tudo. Eu não acho justo que ele fique livre"
Vítima de abuso sexual
Outra vítima, de Brasília, disse que confia no trabalho do Ministério Público, por isso acredita que João de Deus não ficará impune. “Eu acho que não dá para ele simplesmente voltar para casa. Eu sei que os advogados vão fazer de tudo para que isso aconteça, mas para mim não faz o mínimo sentido. São mais de 40 anos cometendo o mesmo tipo de crime, de uma maneira padronizada, contra muitas mulheres”, disse.

As duas mulheres entraram em 2019 com expectativa que a história de sofrimento ganhe um ponto final. “Eu comecei o ano mais leve, mais confiante de que as coisas vão voltar ao normal na minha vida. São mais de 10 anos esperando que alguma coisa fosse feita contra ele diante de tudo que eu vivi. Por um lado, é um grande alívio que esse momento tenha chegado”, comentou uma delas.

Denúncias
A promotora Gabriella de Queiroz, integrante da força-tarefa montada pelo
MPGO para receber e investigar denúncias contra o médium, afirmou que o poder de João de Deus impediu que muitas vítimas revelassem os fatos ao longo dos anos. O caso mais antigo apresentado ao órgão ocorreu em 1975 e o mais recente, em maio de 2018.

Era um contexto de ainda mais medo, de ainda mais receio, sobretudo em face de uma figura com tamanho poderio, não só religioso. Poderio financeiro, ligado à influência junto a políticos, pessoas famosas, à comunidade local "
promotora Gabriella de Queiroz
Um funcionário da Casa da Sopa, instituição filantrópica mantida por João de Deus, defende o patrão. “Se seu João sair hoje, volta tudo ao normal”, afirmou. Sem se dar conta, acabou comparando o médium à protagonista de um dos crimes mais chocantes do Brasil. “Eu acho ele menos perigoso que a Suzane Richthofen. Não é justo ela poder sair e ele não”, opinou.

Desde quando as primeiras denúncias de abuso sexual foram expostas, ele acompanhou atentamente os passos dos jornalistas que frequentaram a calçada de seu local de trabalho e confessou que ajudou a esposa de João de Deus, Ana Keyla Lourenço, sair despercebida diversas vezes pelos fundos da casa residencial do médium, que fica do outro lado da rua.

“Vi um tanto de coisa. Aqui ficou bonito de jornalista. Mas do portão da casa para dentro não sei nada do que acontece”, disse.

Nessa residência do médium, policiais da Delegacia de Investigações Criminais (Deic) de Goiás encontraram cinco armas de fogo, sendo uma delas com numeração raspada, e o equivalente a R$ 1,2 milhão em espécie, parte em fundos falsos. A esposa foi ouvida pela polícia e negou que soubesse da existência dos objetos.

Mais um inquérito policial foi aberto para investigar o crime de posse ilegal de arma de fogo e a Justiça determinou, pela segunda vez, a prisão preventiva do acusado. Na decisão, o juiz Luciomar Fernandes da Silva expõe que, conforme as fundamentações das autoridades policiais, “ao que tudo indica João de Deus chefia uma organização criminosa que atua principalmente na cidade de Abadiânia”.

Um habeas corpus referente a essa prisão foi concedido pela Justiça de Goiás, mas o médium permaneceu preso por suspeita de crimes sexuais.

A reportagem foi autorizada a entrar no estabelecimento. Apesar de o funcionário dizer que o movimento na Casa da Sopa era normal, apenas duas pessoas foram vistas se alimentando por volta do meio-dia.

Com as mesas vazias, as paredes repletas de fotografias chamaram a atenção. De terno, João de Deus posava ao lado de convidados para suas festas de aniversário. Em um dos registros, figuram o ex-governador do Distrito Federal Rodrigo Rollemberg (PSB) e o ministro do Supremo Tribunal Federal Roberto Barroso.

Circulação de dinheiro
As engrenagens econômicas de Abadiânia funcionam lentamente em janeiro. A Casa Dom Inácio teve queda de aproximadamente 70% no número de visitas. Um dos administradores do centro, Chico Lobo informou que cerca de 1,2 mil pessoas têm passado pela casa em dias de atendimento, de quarta a sexta-feira, enquanto anteriormente havia registro de até 6 mil pessoas.

O cenário encontrado pela reportagem na quinta-feira (3) foi muito diferente daquele visto quando o médium esteve no local pela última vez, em 12 de dezembro. Poucas pessoas de branco caminhavam pela principal avenida de cidade, e as dependências da casa ficaram pouco movimentadas.

Enquanto o centro espiritualista garante que manterá as portas abertas, a realidade dos comerciantes na mesma rua, a poucos metros da casa, é diferente. Célia Mello Oliveira, de 64 anos, decidiu que vai fechar a pousada Nossa Senhora de Fática, em funcionamento há seis anos. Há três semanas, as poucas reservas de fim de ano foram canceladas e nenhum hóspede foi recebido.

Célia se mudou para Abadiânia 20 anos atrás. Desde então, concilia seu trabalho no comércio com a colaboração na corrente de orações da Casa Dom Inácio. No computador da recepção da pousada, ela mostra, com olhos marejados, fotos onde a energia da casa materializada apareceria. Em outro registro, um triângulo formado no céu com a colaboração de um arco-íris também ajuda na manutenção de sua fé. “São sinais. Bênçãos para nós”, declarou.

Dona de uma loja de artesanato e acessórios, Vânia Caldeira, de 45 anos, estima uma perda de 80% do rendimento no mês de dezembro em comparação ao mês anterior. Por enquanto, vai tentar manter o negócio. A comerciante pede para que parte dos R$ 50 milhões em bens bloqueados seja usado também para gerar emprego na cidade. “É um dinheiro que saiu daqui, com o suor das pessoas”, opinou.

O prefeito da Abadiânia, José Diniz (PSD), não tem um “plano B” para ser aplicado de imediato. O chefe do Executivo atribuiu ao médium a movimentação de cerca de 20% da economia local. Diniz espera apoio do governo estadual de Goiás, do governo federal e cogita pedir ajuda até mesmo ao governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB). O prejuízo estimado até o momento ainda não foi calculado.

“Estou trabalhando para trazer alternativas. Temos o lago, numa área extremamente importante para o desenvolvimento do município. Ainda não temos a estrutura de hotelaria necessária. Para isso, precisamos resolver a questão da infraestrutura, pois ainda faltam quatro quilômetros de pavimentação para serem feitos. Vale salientar que isso aconteceu num período complicado de troca de governos”, explicou.

Adversário político de João de Deus, o prefeito se abstém de comentários sobre a influência do médium na cidade. “O que interessa para mim é a população de Abadiânia. Eu não posso dizer, até por que não tenho conhecimento”, afirmou.
Fonte: Metrópoles

link; https://www.metropoles.com/brasil/lei-do-silencio-mesmo-preso-joao-de-deus-causa-temor-em-abadiania